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Toda cidade pequena que se preza mantém em seus anais, registros de figurinhas ímpares que entram para a história e se tornam celebridades, venerados até com certo orgulho, pelos habitantes locais.
Dentre os personagens de destaque de Cascudo Este, ponto inexistente no mapa político de um de nossos menores Estados, insignificante cidadezinha de uma senhora portuguesa baixinha e atarracada, com seu costumeiro vestido de chita e lenço na cabeça, de buço fartamente coberto por forte e espessa penugem, para uns e saliente bigode para outros, e adornando seu redondo rosto, uma robusta verruga ao lado esquerdo do nariz. Boca pequena, mas língua grande e solta, movida pelo pavio curto. Dotada de uma verborragia conhecida e incontrolável, era uma metralhadora giratória, que não media o que falava, era só provocar. Com ela não existia meio termo, era perguntar uma e sair com três, entrar com um quente e sair com dois fervendo. Essa era a Sinfrósia... ou melhor, dona Sinfrósia, portuguesa da Ilha da Madeira que aportou por aqui ainda adolescente, acompanhando os pais que viram em nossas terras um futuro melhor para a pequena família lusa. Com a morte prematura dos pais e viúva precoce de Manél, único homem de sua vida, Dona Sinfrósia, sempre atirada, venceu na vida à custa de muito trabalho. Hoje, comerciante estabelecida em Cascudo Este, sobrevivia de uma padaria e uma loja de quinquilharias, onde se encontra desde pregos até galinhas vivas.
Nossa personagem, devido ao contato diário, proporcionado pelo ramo de negócio, era uma das pessoas mais bem informadas da cidade e também das mais antigas moradoras locais. Apesar da língua lusa afiada, as coisas caminhavam bem lentas, no ritmo daquele logradouro, até que um dia o angu encaroçou por lá. Na Praça do Lampião Aceso área central, formou-se um furdunço sem igual, acabando com a calma do pacato vilarejo praticamente encravado nos pés de uma colina. Prenderam o prefeito Varvito Vaiz e mais dois vereadores, o Zé da Vaca e Dito Zóio!
O Padre Gonçalves de chapéu e hábito pretos corria em direção à confusão de batina erguida, parecendo uma freira no cio e querendo saber o que estava acontecendo... talvez uma sessão de exorcismo em plena praça. Muitos carros, armas e policiais desfilavam pelas ruas centrais, exibindo todo seu poderio, um misto de parada militar com desfile de escola de samba. Até os bêbados do Bar do Zé Bananeira, se livraram apressadamente dos copos de cachaça se posicionaram com as mãos nos peitos esperando pela execução magna do Hino Nacional, que não aconteceu. Eles até ensaiaram as primeiras palavras do hino, difícil de ser ebriamente lembrado e ainda mais, decorado.
Dr. Nilo Aranha, delegado local, ausente da delegacia por mais de três dias, acometido por uma ingrata diarréia, ouviu do trono as sirenes dos carros oficiais invadirem a praça. De serviço na casa da lei, apenas o cabo Periquito, apelido de criança, devido ao seu volumoso nariz que ganhou saliente nó depois de uma queda sofrida em um jogo de futebol contra os engomadinhos da capital. E um soldado que completava o destacamento de Acudo Este, estava de licença. O cabo se assustou com a invasão do local dos policiais, sob o comando do delegado federal Dr. Hipólito, que apresentou as ordens de prisão e pedindo a presença do responsável. Os três suspeitos já estavam devidamente engaiolados nos chiqueirinhos das viaturas, acompanhando assustados toda a movimentação. Como a curiosidade estava bem acima do dever, o delegado apareceu respaldado por um estratégico fraldão, surrupiado do sogro.
Recebeu das mãos dos promotores do Ministério Público, os mandatos e as explicações da justiça. O prefeito teria que responder pelo crime de desvio de recursos públicos e formação de quadrilha. Os dois vereadores, por apropriação indébita e peculato, além de desacato, pois Zé da Vaca quando de sua prisão deu uma cabeçada num dos federais e chamou o delegado de “florzinha do campo”. Fatos relatados ao delegado titular que tomou as devidas providências, lascando mais um B.O. ao processo, no tempo recorde de dez minutos, valorizado pelas pontadas na barriga e pelo suor que brotava frio na testa, mas dever era dever e o fraldão garantia.
Os três parlamentares foram acomodados na única cela da delegacia enquanto que os agentes do MP em companhia de um aparato policial trabalhavam revirando tudo na prefeitura. E o povo se aglomerava nas imediações da delegacia num falatório sem precedentes onde acusavam o prefeito até de “estrupo” e os dois vereadores de “terrorísticos” e versões diferentes se espalharam como um rastilho de pólvora pelos quatro cantos do vilarejo, um escândalo na cidade.
Padre Gonçalves, adentrou a delegacia, chamado em nome da velha amizade que tinha pelo prefeito Varvito que de imediato lhe pediu a extrema-unção! O padre pacientemente explicou que ninguém iria morrer e a prisão dos três era apenas pra prestar declarações pra polícia. Dito Zóio, ao ver o vigário, desatou a chorar pedindo perdão por seus pecados que não eram poucos, enquanto que o Zé da Vaca estava mais preocupado com seus criames. Se tivesse de passar dessa pra outra vida, paciência, muitos ficariam sem ver a cor de seu dinheiro, pois não faltava gente pra quem ele devia, talvez a cidade toda.
Ao final de uma semana de investigações, os promotores de posse de provas começaram a intimar as testemunhas que pudessem acrescentar dados novos ao processo bem encorpado, contra as três figuras públicas de Acudo Este.
Para a surpresa de muitos, uma das intimadas a prestar declarações à justiça era dona Sinfrósia, pois conhecia bem os três desde que se conhecia por gente. Foi aí que começou toda a merda e não houve estratégia que pudesse consertar a situação.
Dia marcado e Dona Sinfrósia, mostrando nervosismo e preocupação por deixar a padaria sob responsabilidade da Xinha, ex-quenga e assídua nas atividades sacramentais da igreja, mas, que não largou seus antigos hábitos e nem abandonou a boca do povo que comentava seus voos solos, atrás da paróquia, mas isso é uma outra conversa. Pelo menos a lojinha de quinquilharias a portuga fechou neste dia.
Na realidade os promotores do Ministério público, apenas queriam somar mais algumas informações ao processo em questão e a portuguesa deveria responder apenas duas ou três perguntas pertinentes ao prefeito e vereadores. Não avisaram à portuga e aí o angu encaroçou.
Aberto os trabalhos e após as apresentações formais, os promotores partiram para os finalmentes e inquiriram a portuguesa, que nervosa e soava em bicas. Promotor emendou:
- Seu nome é Sinfrósia Pereira?
- Sim, senhore dotore, desde que me conheço!!!
- Pois bem, retrucou o promotor percebendo o nervosismo da mulher e antes de sabatiná-la, e pra estabelecer uma linha de argumentação perguntou se ela estava bem.
- Ah! Seu dotore, hoje não acordei bãim! Acho que minha pressão alta está muito alta e a baixa... muito baixa, ora pois! Um dos promotores segurando o riso, continuou seu trabalho.
- A senhora conhece Varvito Vaiz, prefeito de Acudo Este?
- Ora pois, Então... conheço muito bem, desde que era do tamanho de um rato. Só chorava e francamente me decepcionou. Esse safado mente pra mulher, trai a mulher com a secretária nas segundas, quartas e sextas. Nas terças e quintas não sai do único puteiro que existe por aqui, onde deve até as calças. Sua conta em minha padaria já passou dos três dígitos. Além de putanheiro e péssimo prefeito, não trabalha, é fofoqueiro e manipula as pessoas, desvia impostos da prefeitura e mantém uma amante na cidade vizinha. O Varvito acha que é um político influente e respeitado na cidade, quando na realidade é apenas um coitado. Nem sabe que seu filho mais velho é viado e sua filha do meio tá grávida e pelo que sei nem ela sabe direito quem é o pai. Também é um dos muitos desta cidade que não pode mais usar chapéu, por causa do par de chifres que ganhou há um bom tempo. Ah! Seu dotore, o Varvito eu conheço muito bem!
O promotor fica petrificado e sem voz, incapaz de acreditar no que estava ouvindo. Sem ação ele olha para o colega e os demais presentes, limpa a garganta e sem saber direito o que fazer, aponta para um dos vereadores, o Zé da Vaca e tasca a pergunta a portuguesa:
- E o senhor José Carlos Santana, a senhora também conhece?
- O Zé da Vaca? É claro que eu o conheço e muito bem. Desde criancinha eu cuidava dele pra dona Carlota senhora sua mãe. Sempre que o pai saía, ela arrumava outro compromisso, era alcoviteira de uma casa de tolerância na cidade vizinha. Olha dotore, já que me perguntastes, o Zé foi outro que me decepcionou e muito. Cansei de pegá-lo comendo as minhas galinhas. Mais grandinho partiu para as éguas barranqueiras. Hoje é preguiçoso, metido a puritano, deve pra todo mundo e só consegue comer as putas que consegue enganar de fora da cidade. Metido a dar lição de moral nos outros, está sem moral. Enquanto brinca de vereador, espoliando o povo e bebendo, sua mulher parece bilhete corrido, passando de mão em mão. É traído pela mulher, e o carro novo em que ela desfila pela cidade foi dado pelo mecânico que vive regulando seu motore, o pá!
A sala, agora mergulhada num silencio sepulcral não tirava os olhos da pequenina portuguesa que aproveitou a pausa pra limpar o suor da testa e face com um lenço vermelho e coçar sua verruga de estimação. O outro promotor, percebendo seu colega em apuros, deu uma ajeitada na gravata, arrumou lentamente sua toga, limpou pausadamente a garganta, virou um copo de água, preferindo que fosse uma dose dupla de whisky, sem gelo, e sem jeito partiu para a terceira pergunta, antes que saísse mais uma saraivada da boca lusa.
-Senhora Sinfrósia, a senhora também conhece o outro arrolado, José Benedito de Souza?
- Então, o pá, eu não conheço? O Dito Zóio, bem disse o dotore, é um enrolado. Conheço este marginal zarolho do cacete, este tribufu desde quando chegou a esta cidade com dez anos. Montado no lombo de um bode e puxado por seu pai, caboclo metido a valente que batia na coitada da mulher pelo menos uma vez por semana e andava por todos os botecos onde enchia a cara e enfrentava qualquer um. Deitou-se com todas as quengas da região, mas não gostava de pagar pelos serviços prestados. Trocou duas filhas por dívidas e a terceira vendeu a um turco mascate que passava por aqui de seis em seis meses. Ele desapareceu da cidade depois que sua mulher teve uma crise de chifres e revelou que o marido era frouxo e adorava um fio terra. Dito Zóio cresceu com os vícios do pai e foi eleito vereador pelos bêbados desta cidade. Como homem público é tão reto como seu olho.
Nesse momento um dos promotores pedem pra que dona Sinfrósia encerre seu depoimento. Resolvem se reunir numa sala ao lado e avisam as outras autoridades. E os dois promotores depois de cochicharem demoradamente entre si, são incisivos:
- Se alguém daqui perguntar se esta portuguesa, filha de uma quenga, nos conhece, vai sair preso deste local... fomos claros?
Roquemberg Duarte
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